Como é dirigir um carro de Fórmula 1 cheio da tecnologia embarcada
Pilotando com tecnologia
Por Lívio Oricchio
Hoje, o crescente número de controles eletrônicos e o novo posicionamento de alguns deles, no volante, têm uma razão principal: facilitar a vida de quem dirige. Em outras palavras, oferecer maior segurança, pela possibilidade de manter as mãos no volante enquanto realiza as operações.
Ninguém questiona o avanço, mas nem todos dão a devida atenção ao maior grau de vigília necessário ao submetermos o cérebro a administrar várias atividades ao mesmo tempo.
Para os pilotos de corrida, como o Sérgio Sette Câmara, esse exame é bem mais rigoroso, pois sem interagir corretamente com os muitos sistemas disponibilizados no volante do seu Dallara-Mecachrome da Fórmula 2, destinados a otimizar as funções de motor, freios, tração e pneus, com certeza não vai obter os resultados planejados e necessários para realizar o sonho de se tornar piloto de Fórmula 1.
“Com um agravante, no nosso caso, tiramos os olhos da pista para ver quais botões do volante mexer enquanto estamos a 300 km/h”, lembra Sérgio.
Das pistas para as ruas
Essa nova realidade já chegou à indústria automobilística. Ela está exigindo educação especial cada vez maior dos motoristas. E tende a crescer, como estamos vendo na F1 e em menor escala na F2, melhores laboratórios para esses experimentos.
A educação especial se deve, como explicou Sérgio, pelo fato de termos de desviar o olhar da rua ou estrada para ver, por exemplo, se a função do controle multimídia é a selecionada ou a informação, a desejada. É até intuitivo que esse acúmulo de atividades, em plena pilotagem ou condução, expõe todos a maiores riscos de acidentes.
Poderíamos falar de outros dispositivos já incorporados ao volante de muitos modelos, como o controle do sistema de som, o piloto automático, o comando do telefone e GPS.
“Eu não tenho opção de escolha, na maior parte das vezes, preciso intervir rápido, onde estiver, se não o meu concorrente me ultrapassa. Mas quando estou no meu carro normal, não o de corrida, escolho bem o momento e o local para interagir com os recursos do volante ou painel”, diz Sérgio.
“Você pode perfeitamente esperar, por exemplo, se estiver na cidade, a hora de parar em um semáforo. Se alguém te ultrapassar, não faz diferença. Suas chances de maior ou menor sucesso não mudam, como a minha na pista. É muito mais seguro agir prestando atenção quase totalmente naquilo que está fazendo”, afirma Sérgio.
Interior do carro de Fórmula 1 da Mercedes
Funções múltiplas
Durante a maior parte da história das competições de automóvel, do início ao fim do século XX, o volante dos carros tinha uma função, apenas: esterçar as rodas, dar direção aos movimentos.
“Eu comecei na F1, em 1970 (na equipe Lotus), e não havia nenhum botão no volante. E quando saí, em 1980 (no seu próprio time), tinha um, destinado a cortar a alimentação de combustível, uma espécie de chave geral”, explica Emerson Fittipaldi. “Mas pilotei a Ferrari do Michael Schumacher (modelo F2002, campeão do mundo de 2002), em Goodwood (famoso festival, na Inglaterra), e fiquei impressionado. Tive de passar por um curso antes de começar a acelerar para ter uma ideia do que era aquele monte de botões no volante, para que serviam, quando usá-los. Tudo muito diferente do meu tempo de piloto na F1.
E a conclusão de Emerson surpreende: “Dizem que os carros atuais de F1 são muito mais fáceis de pilotar que os dos anos 70, 80, com a eletrônica dominando quase tudo. Pois vejo de maneira bem diferente. Pilotar e, ao mesmo tempo, ter de intervir em todos aqueles comandos é algo complexo e exige grande treinamento. Posso garantir não ser mais fácil”.
Revolução total
A evolução do volante é testemunha dessa transformação. Começaram grandes, de madeira, foram diminuindo o diâmetro e mesmo forma, tornaram-se mais leves, ganharam novos materiais, alumínio, fibra de carbono, a pegada ficou mais anatômica, aderente, o uso mais ergométrico, a força a ser aplicada, menor, e com a introdução de um computador, controles e display foram personalizados. Sim, tudo isso no volante. Nos modelos recentes de F1 seu preço atinge 100 mil euros (R$ 420 mil).
Há um componente que marcou época nesse processo evolucionário do volante, o câmbio. Em 1989, a Ferrari lançou o modelo 640, concebido pelo inovador projetista inglês John Barnard. A grande mudança estava na maneira como os pilotos trocavam as marchas, não mais através da tradicional alavanca de câmbio, do lado direito do cockpit. Barnard introduziu duas pequenas alavancas, atrás do volante.
A da direita servia para trocar as marchas em ascensão, 2ª, 3ª, 4ª, até a 7ª. A alavanca da esquerda se destinava às reduções, 7ª, 6ª, 5ª até a 2ª. Os pilotos precisavam usar o pedal da embreagem apenas para inserir a primeira marcha, o novo câmbio era semiautomático, uma revolução. A partir desse momento, todos viram as vantagens de o piloto manter as duas mãos no volante, ele perdia menos tempo. A embreagem logo passou para o volante também. Esse foi o início de tudo.
Sérgio Sette Câmara, piloto de F2
Comunicação perigosa
Sérgio cita, ainda, outro recurso utilizado nas competições e que tem correspondente nos veículos de série, o rádio. Introduzido na F1 no fim dos anos 80, hoje é parte essencial da comunicação entre piloto e equipe, complementar à exposição das limitadas placas na mureta dos boxes. Diante da maior importância da estratégia de corrida, a troca frequente de informação entre piloto e engenheiros, na F1 e na F2, bem como em outras categorias, tornou-se fundamental para a obtenção do sucesso. Elas são fruto do trabalho em equipe literalmente.
“O rádio seria o equivalente, em termos, ao uso do celular enquanto estamos nos nossos automóveis. Faz todo sentido ser proibido. Eu peço ao meu engenheiro não me chamar quando estou no meio de uma curva. Sempre que possível, entrar no rádio quando cheguei à reta. Mas, claro, nem sempre dá. Eles precisam me informar de um acidente à frente, uma bandeira amarela que receberemos a seguir na pista ou mesmo a vermelha (interrupção da prova). Mas que é fonte de desvio de atenção não tenha a menor dúvida”.
“Para ser diferente você tem de se exercitar muito. Os pilotos de F1, hoje, e mesmo nós na F2, permanecemos horas, dias seguidos nos simulares, a fim de antecipar quase todas as situações na pista e não sermos surpreendidos. Isso faz com que aumentemos nosso automatismo quando pilotamos, não precisamos desviar o pensamento sobre o que fazer, o que certamente nos rouba tempo pela divisão de responsabilidade com a pilotagem”, explica Sette Câmara.
Testemunha de várias épocas
Podemos recorrer a um piloto que experimentou na F1 a transição dessas fases, aquela onde o piloto tinha como obrigação manter-se apenas concentrado em ser veloz, com bem poucos recursos para interagir, em 1993, temporada de estreia, pela Jordan, aos 20 anos, e na mais avançada, 2011, ano de despedida do mundial, na Williams, já com 39 anos de idade.
É provável que você saiba que estamos falando do piloto de maior longevidade da história da F1, Rubens Barrichello, com presença em impressionantes 326 GPs.
“Se há um fator que me exigiu atenção especial, e posso dizer não ser fácil com o aumento da idade, é a necessidade de interagir com os recursos do carro. Conciliar tudo ali na hora, fazer um diagnóstico do que está acontecendo, o que tenho para melhorar aquela reação indesejável, qual estágio do controle usar, mais ou menos forte, enquanto pilotamos, disputamos posição, tudo isso em altíssima velocidade, é algo não simples de se realizar. Acredito que essa, sim, é uma realidade limitante na F1 para os pilotos já com alguma idade”, avalia Barrichello.
De fato, nos dois últimos anos de carreira, na Williams, 2010 e 2011, Rubinho teve dois companheiros jovens e rápidos, o alemão Nico Hulkenberg, 22 anos, e o venezuelano Pastor Maldonado, 26. Mas no fim das duas temporadas Rubinho somou mais pontos que ambos, 47 a 22, em 2010, e 4 a 1, em 2011. O piloto dá a entender que ser eficiente nesse nível, com mais idade, seria para bem poucos.
Sérgio lembra que as gerações mais jovens, como a sua, têm naturalmente certa facilidade em dominar novas tecnologias ou praticar alguma atividade onde é necessário interagir com elas, rapidamente, como na profissão de piloto. O piloto de Minas Gerais tem 19 anos de idade.
“Nasci com o celular na mão, pode-se dizer. Mas essa história de ser mais fácil para nós é verdade em parte, pois conheço pessoas de mais idade que se relacionam com tecnologias complexas e bem melhor que muitos jovens. Mas concordo que a minha geração de pilotos, por nascer já diante desse universo tecnológico, se dá, como regra, melhor“, diz Sette.
Palavra de supercampeão
O setpacampeão do mundo Michael Schumacher explicou o que se passou com ele quando deixou a F1 pela segunda vez, no fim de 2012. Tem tudo a ver com o tema de nosso debate.
“Eu não mudei. Foi a F1 que mudou. Quando competia e vencia, o que fazíamos era acelerar o tempo todo, tirar o máximo de velocidade do carro. Fazíamos dois, três pit stops, para reabastecer, colocar pneus novos e voltar a exigir tudo, de nós e do carro. Hoje, temos de pilotar pensando em como economizar pneus, gasolina, não é mais possível dar 20 voltas em regime máximo, os pilotos se tornaram administradores do carro, tendo de interagir com vários sistemas o tempo todo. Não é essa a F1 que conheci e, pelas estatísticas, me dei bem.”
Repare que no fundo foi a necessidade de Schumacher gerenciar em tempo integral o funcionamento do modelo da Mercedes de F1, nos três anos da volta, que o tirou um tanto da realidade. Segundo ele próprio. Não podia mais apenas acelerar. E é o diagnóstico da maioria na F1, em conversas reservadas. O seu companheiro, Nico, 16 anos mais jovem, diferença considerável, explorou bem melhor o novo tipo de exame que a F1 impôs aos pilotos.
Nico Rosberg, ex-piloto de Fórmula 1
“Quem sou eu para falar alguma coisa de Michael Schumacher. Tenho, sim, é de admirá-lo. Mas penso que ele próprio definiu o que se passou quando voltou para a F1. A única coisa que posso dizer é que a sua explicação faz todo sentido. Pela lógica, um carro mais simples, que o permitisse andar no limite, sem tanta preocupação em mexer aqui e ali para mantê-lo veloz, o teria levado a resultados bem melhores“, afirma Nico.
Niki Lauda, três vezes campeão do mundo, atualmente sócio da equipe Mercedes, comenta sobre a preparação disponibilizada hoje aos pilotos e no seu início de carreira:
“Quando vim para a F1, no começo dos anos 70 (primeira temporada inteira foi em 1972, com March), o que primeiro nos chocava era o nível da F1, tudo muito mais alto do que estávamos acostumados antes, seja lá onde for. Hoje esse choque não existe. Os pilotos que formamos (na academia da Mercedes) têm contato com tudo o que enfrentarão e os simulares reproduzem bem a realidade. Além do preparo técnico os pilotos são superatletas, treinados por profissionais, e psicologicamente fortes, também pelo trabalho de especialistas. Podemos dizer que se deparam com poucas surpresas e, quando aparecem, são treinados para como lidar com elas.”